sábado, abril 03, 2004

Do Valor da Tradição

Em cumprimento do que havia prometido ao Buiça, aqui fica mais um texto de António Sardinha, retirado de "Na Feira dos Mitos", originalmente publicado em 1926:

"Compreende-se, pois, o sentido social e político do "tradicionalismo". Se, por exemplo, se fala no municipalismo português, ninguém pensa em voltar aos forais, tal como a Idade Média os concebeu, nem aos procuradores das vilas, recebidos em Cortes por procuração passada em termos imperativos. O que se pretende é conservar esse apreciável instinto localista que assegura de per si a realização de mais saudáveis medidas descentralizadoras no interesse do Estado e no aproveitamento das diversas representações regionais e provinciais. Deste modo, a política é para nós uma realidade, - uma como que experiência, garantida e comprovada pelo decurso da história.

A história - e não as nossas predilecções doutrinárias - é que nos deve guiar na determinação do regime que mais convém aos destinos de uma nacionalidade. Já Taine asseverava que não deviam existir "constituições" escritas. O que existe é uma "constituição" ditada pelo passado e que sendo a segunda natureza de um povo, não aliena com ela as condições de vida do mesmo povo.

Reputo definido o verdadeiro, o rigoroso conceito da "Tradição". Antecipando-se ao seu tempo, o senhor de Bonald declarava há mais de um século que as instituições do passado não eram boas por serem antigas, mas eram antigas por serem boas. Eis aqui o fundamento positivo do "tradicionalismo". Non nova, sed nove. A "Tradição" para nós não vale sentimentalmente, como as ruínas valiam para os românticos, - como uma quantidade morta, que a saudade encheu do seu perfume estranho. Não, leitor amigo! A "Tradição" vale, sobretudo, como a permanência na continuidade. Corresponde àquela ideia directriz que já Claude Bernard assinalava como presidindo ao desenvolvimento dos seres. Quebrá-la é cortar a sequência hereditária, romper os antecedentes morais e sociais de que somos um elo aditivo. Regressar à "Tradição" não é, portanto, regressar a um ponto interrompido, já a sumir-se além, nas nuvens da distância. É antes inseri-nos nos moldes próprios da nacionalidade, mas na altura precisa em que estaríamos hoje se a ruptura não se tivesse produzido. Numa palavra e conforme Paul Bourget: - o doente que delira a 40º de febre, não recua, se recupera a temperatura normal. Bem pelo contrário, ele progride. Restituir ao nosso país o seu meio-vital obliterado, o mesmo é que restituir ao doente o seu estado anterior de saúde. Tal é o valor da "Tradição", como nós a olhamos e a ciência o acredita.

(…)

Acentuemo-lo bem na hora que passa, para que as inteligências bem dotadas se compenetrem da actualidade da nossa aspiração e da sua plena concordância com as correntes mais notáveis do pensamento moderno. É como teremos respondido aos que nos imaginam divorciados da marcha da sociedade, passeando o nosso suposto arcaísmo sobre uma paisagem de forcas e de fogueiras inquisitoriais!"

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