sábado, maio 29, 2004

Mea Culpa

Com algum atraso, ainda em comemoração do centésimo décimo aniversário do nascimento de Louis-Ferdinand Céline, aqui deixo um extracto do "Mea Culpa", que sempre me impressionou, e no qual o escritor evidencia toda a sua profunda desilusão com a natureza humana (a tradução portuguesa é de autoria de Manuel João Gomes, publicada pelas Edições Antígona, de Lisboa, em 1989):

"A superioridade prática das grandes religiões cristãs estava em doirarem a pílula. Não procuravam atordoar, não andavam à cata de eleitores, não sentiam a necessidade de agradar, não precisavam de dar ao rabo. Iam buscar o Homem ao berço e impingiam-lhe a verdade sem mais cerimónias. Cantavam-lha bem cantada e sem subterfúgios: "Tu putrículo informe e insignificante, tu nunca passarás de imundície… És só merda de nascença… Estás a perceber?... É mais do que evidente, é o princípio de tudo! Mas… se calhar… se calhar… se calhar… vendo a coisa mais de perto… pode ser que tenhas uma oportunidade de te perdoarem por seres assim imundo, excremencial, incrível… É mostrares boa cara a todas as penas, provações, misérias e tormentos da tua existência breve ou longa. Em perfeita humildade… A vida, a velhaca, não é mais do que uma prova rude! Não te esfalfes! Não andes à procura de grandes trabalheiras! Salva a tua alma, já não é mau de todo! Talvez lá no fim do calvário, se fores extremamente cumpridor, herói do "cala o bico", venhas a espichar dentro dos princípios… Mas não é certo… um pelinho menos pútrido ao dar o berro do que ao nascer… quando caíres na noite mais respirável do que na aurora… Mas deixa-te de ideias! É tudo!... Cautelinha! Não especules com grandes coisas! Para um cagalhão, isso é o máximo!..."

Isto sim! é que é conversa a sério! dos verdadeiros Padres da Igreja! Que entendiam da poda! Que não alimentavam ilusões!

A grande pretensão à felicidade, não há impostura maior! É ela que complica a vida toda! Que torna a gente tão peçonhenta, crapulosa, intragável. Na existência não há felicidade, há só infelicidades mais ou menos grandes, mais ou menos tardias, ruidosas, secretas, diferidas, dissimuladas…".

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