segunda-feira, outubro 24, 2011

A idade da cegueira

Oh quem me dera ter agora neste auditório a todo o mundo! Quem me dera que me ouvira agora Espanha, que me ouvira França, que me ouvira Alemanha, que me ouvira a mesma Roma! Príncipes, Reis, Emperadores, Monarcas do mundo, vedes a ruína dos vossos reinos, vedes as aflições, e misérias dos vossos vassalos, vedes as violências, vedes as opressões, vedes os tributos, vedes as pobrezas, vedes as fomes, vedes as guerras, vedes as mortes, vedes os cativeiros, vedes a assolação de tudo? Ou vedes, ou não o vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se não o remediais, como o vedes? Estais cegos. Príncipes Eclesiásticos, grandes, maiores, supremos, e vós, ó Prelados que estais em seu lugar, vedes as calamidades universais, e particulares da Igreja, vedes os destroços da Fé, vedes o descaimento da Religião, vedes o desprezo das Leis Divinas, vedes a irreverência dos lugares sagrados, vedes o abuso dos costumes, vedes os pecados públicos, vedes os escândalos, vedes as simonias, vedes os sacrilégios, vedes a falta de doutrina sã, vedes a condenação, e perda de tantas almas dentro, e fora da Cristandade? Ou o vedes, ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se não o remediais, como o vedes? Estais cegos. Ministros da República, da Justiça, da Guerra, do Estado, do Mar, da Terra, vedes as obrigações que se descarregam sobre o vosso cuidado, vedes o peso que carrega sobre vossas conciências, vedes as desatenções do governo, vedes as injustiças, vedes os roubos, vedes os descaminhos, vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os subornos, vedes os respeitos, vedes as potências dos grandes, e as vexações dos pequenos, vedes as lágrimas dos pobres, os clamores, e gemidos de todos? Ou o vedes, ou o não vedes? Se o vedes, como não remediais? E se não o remediais, como o vedes? Estais cegos. Pais de família, que tendes casa, mulher, filhos, criados, vedes o desconcerto, e descaminho das vossas famílias, vedes a vaidade da mulher, vedes o pouco recolhimento das filhas, vedes a liberdade, e más companhias dos filhos, vedes a soltura, e descomedimento dos criados, vedes como vivem, vedes o que fazem, e o que se atrevem a fazer, fiados muitas vezes na vossa dissimulação, no vosso consentimento, e na sombra do vosso poder? Ou o vedes, ou o não vedes? Se o vedes, como não remediais? E se não o remediais, como o vedes? Estais cegos. Finalmente, homem Cristão, de qualquer estado, e de qualquer condição que sejas: vês a Fé, e o Carácter, que recebeste no Baptismo, vês a obrigação da Lei que professas, vês o estado em que vives há tantos anos, vês os encargos da tua conciência, vês as restituições que deves, vês a ocasião de que não te apartas, vês o perigo da tua alma, e de tua salvação, vês que estás actualmente em pecado mortal, vês que se te toma a morte nesse estado, que te condenas sem remédio; vês que se te condenas, hás-de arder no Inferno, enquanto Deus for Deus, e que hás-de carecer do mesmo Deus por toda a eternidade? Ou vemos tudo isto, Cristãos, ou não o vemos? Se o não vemos, como somos tão cegos? E se o vemos, como o não remediamos? Fazemos conta de o remediar algu hora, quando há-de ser esta hora? Ninguém haverá tão ímpio, tão bárbaro, tão blasfemo, que diga que não. Pois se o havemos de remediar algu hora, quando há-de ser esta hora? Na hora da morte? Na última velhice? Essa é a conta que lhe fizeram todos os que estão no Inferno, e lá estão, e lá estarão para sempre. E será bem que façamos nós também a mesma conta, e que nos vamos após eles? Não, não, não queiramos tanto mal a nossa alma. Pois se algum dia há-de ser, se algum dia havemos de abrir os olhos, se algum dia nos havemos de resolver, porque não será neste dia?

Ah Senhor, que não quero persuadir aos homens, nem a mi (pois somos tão cegos), a Vós me quero tornar. Não olheis, Senhor, para nossas cegueiras, lembrai-Vos dos Vossos olhos, lembrai-Vos do que eles fizeram hoje em Jerusalém. Ao menos um cego saia hoje daqui alumiado. Ponde em nós esses olhos piedosos; ponde em nós esses olhos misericordiosos; ponde em nós esses olhos Omnipotentes. Penetrai, e abrandai com eles a dureza destes corações: rasgai, e alumiai a cegueira destes olhos; para que vejam o estado miserável de suas almas; para que vejam quant
o lhes merece essa Cruz, e essas Chagas; e para que lançando-nos todos a Vossos pés, como hoje fez o cego, arrependidos com ua firmíssima resolução de nossos pecados, nos façamos dignos de ser alumiados com Vossa Graça, e Vos ver eternamente na Glória.

Padre António Vieira, "Sermão da Quinta Quarta-Feira da Quaresma", pregado na Misericórdia de Lisboa, no ano de 1669.

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