domingo, maio 27, 2012

Dia de Pentecostes


Está dito e está provado. Mas que se tira ou colhe daqui? Parecerá porventura aos ouvintes que esta doutrina é só para os pregadores da fé, para os religiosos, para os missionários, para os pastores e ministros da Igreja? Assim será noutras terras: nestas nossas é para todos. Nas outras terras uns são ministros do Evangelho, e outros não; nas conquistas de Portugal todos são ministros do Evangelho. Assim o disse Santo Agostinho pregando na África, que também é uma das nossas conquistas. Explicava o santo aquela sentença de Cristo: Ubi sum ego, illic et minister meus erit, em que o Senhor promete que, onde ele está, estarão também seus ministros. E convertendo-se o grande doutor para o povo, disse desta maneira: Cum auditis, fratres, Dominum dicentem illic et minister meus erit, nolite tantummodo bonos episcopos et clericos cogitare; etiam vos pro modulo vestro ministrate Christo: Quando ouvis os prémios que Cristo promete a seus ministros, não cuideis que só os bispos e os clérigos são ministros seus: também vós, por vosso modo, não só podeis, mas deveis ser ministros de Cristo. E por que modo será ministro de Cristo um homem leigo, sem letras, sem ordens e sem grau algum na Igreja? O mesmo santo o vai dizendo: Bene vivendo: vivendo bem, e dando bom exemplo; Eleemosynas faciendo: fazendo esmolas, e exercitando as outras obras de caridade; Nomem doctrinamque ejus, quibus potuerit, praedicando: e pregando o nome de Cristo, e ensinando a sua fé e doutrina a todos aqueles a quem puder; Unusquisque paterfamilias pro Christo et pro vita aeterna suos omnes admoneat, doceat, hortetur, corripiat, impendat benevolentiam, exerceat disciplinam: Cada um dos pais de famílias em sua casa, por amor de Cristo e por amor da vida eterna, ensine a todos os seus o que devem saber, encaminhe-os, exorte-os, repreenda-os, castigue-os, tire-os das más ocasiões, e já com amor, já com rigor, zele, procure e faça diligência por que vivam conforme a lei de Cristo.

Este tal pai de famílias, que será? Ouvi, cristãos, para consolação vossa o que conclui Agostinho: Ita in domo sua ecclesiasticum et quodammodo episcopale implebit officium, ministrans Christo, ut in aeternum sit cum ipso: Por este modo um pai de famílias, um homem leigo fará em sua casa não só ofício eclesiástico, mas ofício episcopal, e não só será qualquer ministro de Cristo, senão o maior de todos os ministros, quais são os bispos, servindo e ministrando nesta vida a Cristo, para reinar eternamente com eles: Ministrans Christo, ut in aeternum sit cum ipso. Isto dizia Santo Agostinho aos seus povos da África, e o pudera dizer com muito maior razão aos nossos da América.

Oh! se o divino Espírito, que hoje desceu sobre os Apóstolos, descera eficazmente com um raio de sua divina luz sobre todos os moradores deste Estado, para que dentro e fora de suas casas acudiram às obrigações que devem à fé que professam, como é certo que ficariam todos neste dia não só verdadeiros ministros mas Apóstolos de Cristo? Que coisa é ser Apóstolo? Ser Apóstolo nenhuma outra coisa é senão ensinar a fé e trazer almas a Cristo; e nesta conquista ninguém há que o não possa, e, ainda, que o não deva fazer. Primeiramente nesta missão do Rio das Amazonas, que amanhã parte (e que Deus seja servido levar e trazer tão carregada de despojos do céu, como esperamos, e com tanto remédio para a terra, como se deseja) que português vai de escolta, que não vá fazendo ofício de Apóstolo? Não só são Apóstolos os missionários, senão também os soldados e capitães, porque todos vão buscar gentio e trazê-los ao lume da fé e ao grémio da Igreja. A Igreja formou-se do lado de Cristo, seu esposo, como Eva se formou do lado de Adão. E formou-se quando do lado de Cristo na cruz saiu sangue e água: Exivit sanguis et aqua. O sangue significava o preço da Redenção, e a água, a água do Baptismo. E saiu o sangue junto com a água, porque a virtude que tem a água é recebida do sangue. Mas, pergunto agora, este lado de Cristo, donde se saiu e se formou a Igreja, quem o abriu? Abriu-o um soldado com uma lança, diz o texto: Unus militum lancea latus ejus aperuit. Pois também os soldados concorrem para a formação da Igreja? Sim, porque muitas vezes é necessário que os soldados com suas armas abram e franqueiem a porta, para que por essa porta aberta e franqueada se comunique o sangue da Redenção e a água do Baptismo: Et continuo exivit sanguis et aqua. E quando a fé se prega debaixo das armas e à sombra delas, tão Apóstolos são os que pregam como os que defendem, porque uns e outros cooperam à salvação das almas.

E se eu agora dissesse que nesta conquista, assim como os homens fazem ofício de Apóstolos na campanha, assim o podem fazer as mulheres em suas casas? Diria o que já disseram grandes autores: eles na campanha trazendo almas para a Igreja, fazem ofício de Apóstolos; e elas em suas casas, doutrinando seus escravos e escravas, fazem ofícios de Apóstolas. Não é o nome nem a gramática minha; é do doutíssimo Salmeirão, o qual chamou às Marias: Apostolorum apostolas: Apóstolas dos Apóstolos. E porquê? Porque lhes anunciaram o mistério da Ressurreição de Cristo. Pois, se aquelas mulheres, que anunciaram a homens, já cristãos e discípulos de Cristo, um só mistério, merecem nome de Apóstolas, aquelas que anunciam e ensinam a seus escravos gentios e rudes todos os mistérios da salvação, quanto mais merecem este nome? Põe-se uma de vós a ensinar por amor de Deus ao seu tapuia e à sua tapuia o Creio-em-Deus-Padre, e que lhe ensina? Ensina-lhe o mistério altíssimo da Santíssima Trindade, o mistério da Encarnação, o da Morte, o da Ressurreição, o da Ascensão de Cristo, o da vinda do Espírito Santo, o do Juízo, o da Vida Eterna, e todos os que cremos e professamos os cristãos. Vêde se merece nome de Apóstola uma mestra destas?

Não há dúvida que homens e mulheres todos são capazes deste altíssimo nome e deste divino ou diviníssimo exercício. Faz duas parábolas Cristo no Evangelho, uma de um pastor que perdeu uma ovelha, e a foi buscar e trazer dos matos aos ombros, outra de uma mulher que perdeu uma dracma, ou moeda de prata, e acendeu uma candeia para a buscar, e a buscou e achou em sua casa. Esta ovelha e esta moeda perdidas e achadas, são as almas desencaminhadas e erradas que se convertem e encaminham a Deus; quem buscou e achou a ovelha na primeira parábola, e quem buscou e achou a moeda na segunda, são os ministros evangélicos, que trazem e reduzem a Deus estas almas. Pois, se em uma e outra parábola significam estas duas pessoas os ministros evangélicos que trazem almas a Deus, por que na primeira introduziu Cristo um homem, que é o pastor, e na segunda uma mulher, que é a que acendeu a candeia? Para nos ensinar Cristo que assim homens como mulheres todos podem salvar almas: os homens no campo com o cajado, e as mulheres em casa com a candeia; os homens no campo, entrando pelos matos com as armas, e as mulheres em casa, alumiando e ensinando a doutrina.

Vêde como estava isto profetizado pelo profeta Joel, no mesmo capítulo segundo, que foi o que hoje declarou S. Pedro ao povo de Jerusalém; Sed et super servos meos, et ancillas in diebus illis effundam spiritum meum, et prophetabunt ; Naqueles dias, diz Deus, derramarei o meu Espírito sobre os meus servos e sobre as minhas servas, e todos pregarão. Notai; não diz Deus que derramará o seu Espírito só sobre os servos, senão sobre os servos e sobre as servas: Super servos meos, et super ancillas: porque não só os homens, senão os homens e também as mulheres podem e devem, e hão-de pregar, e dilatar a fé, cada um conforme seu estado: Et prophetabunt. Por isso hoje, com grande mistério, no Cenáculo de Jerusalém, onde desceu o Espírito Santo, não só se acharam homens, senão mulheres: Hi omnes erant perseverantes unanimiter in oratione cum mulieribus. Estavam homens e estavam mulheres no Cenáculo, porque a homens e a mulheres vinha o Espírito Santo fazer mestres e mestras da doutrina do céu, e ensiná-los para que a ensinassem: Ille vos docebit.

Suposto pois que não só aos eclesiásticos, senão também aos seculares, não só aos homens, senão também às mulheres pertence, ou de caridade ou de justiça, ou de ambas estas obrigações, ensinar a fé e a lei de Cristo aos gentios e novos cristãos naturais destas terras em que vivemos, cada um conforme seu estado, não haja, de hoje em diante, com a graça do Espírito Santo, quem se não faça discípulo deste divino e soberano Mestre, para o poder ser ao menos dos seus escravos. Os que sabeis a língua, tereis maior facilidade; os que a não sabeis, tereis maior merecimento. E uns e outros, ou por nós mesmos (que sempre será o melhor) ou por outrem, vos deveis aplicar a este tão cristão e tão devido exercício, com tal diligência e cuidado, que nenhum falte com o pasto necessário da doutrina às poucas ou muitas ovelhinhas de Cristo que o Senhor lhes tiver encomendadas, pois todos nesta conquista sois pastores ou guardadores deste grande pastor. Muitos o fazem assim com grande zelo, cristandade e edificação; mas é bem que o façam todos.

E ninguém se escuse (como escusam alguns) com a rudeza da gente, e com dizer, como acima dizíamos, que são pedras, que são troncos, que são brutos animais, porque, ainda que verdadeiramente alguns o sejam ou o pareçam, a indústria e a graça tudo vence, e de brutos, e de troncos, e de pedras os fará homens. Dizei-me, qual é mais poderosa, a graça ou a natureza? A graça, ou a arte? Pois o que faz a arte e a natureza, por que havemos de desconfiar que o faça a graça de Deus, acompanhada da vossa indústria? Concedo-vos que esse índio bárbaro e rude seja uma pedra: vêde o que faz em uma pedra a arte. Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe, e, depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até a mais miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama, e fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar. O mesmo será cá, se a vossa indústria não faltar à graça divina. É uma pedra, como dizeis, esse índio rude? Pois, trabalhai e continuai com ele (que nada se faz sem trabalho e perseverança) aplicai o cinzel um dia e outro dia, dai uma martelada e outra martelada, e vós vereis como dessa pedra tosca e informe fazeis não só um homem, senão um cristão, e pode ser que um santo.

Não é menos que promessa e profecia do maior de todos os profetas; Potens est Deus de lapidibus istis suscitare filios Abrahae: Poderoso é Deus a fazer destas pedras filhos de Abraão. Abraão é o pai de todos os que têm fé; e dizer o Baptista que Deus faria de pedras filhos de Abraão foi certificar e profetizar que de gentios idólatras, bárbaros e duros como pedras, por meio da doutrina do Evangelho havia Deus de fazer não só homens, senão fiéis, e cristãos, e santos. Santo Ambrósio: Quid aliud quam lapides habebantur; qui lapidibus serviebant, similes utique his qui fecerant eos? Prophetatur igitur saxo, sit gentilium fides infundenda pectoribus, et futuros per fidem Abrahae filios oraculo pollicetur Assim o profetizou o Baptista, e assim como ele foi o profeta deste milagre, vós sereis o instrumento dele. Ensinai e doutrina estas pedras, e fareis de pedras não estátuas de homens, senão verdadeiros homens e verdadeiros filhos de Abraão por meio da fé verdadeira. O que se faz nas pedras, mais facilmente se pode fazer nos troncos, onde é menor a resistência e a bruteza.

Padre António Vieira, in “Sermão do Espírito Santo”, pregado na cidade de São Luís do Maranhão, na Igreja da Companhia de Jesus, em ocasião que partia ao Rio das Amazonas uma grande missão dos mesmos religiosos

0 comentários: